10 de jan. de 2007

Seu Antônio Coutinho

Há alguns meses encontrei um homem caído na rua ao sair de um prédio. Ao seu lado, uma caixa de isopor dessas de vendedor de sorvete. Minha mulher e meu sogro, que me acompanhavam, foram chamar os porteiros enquanto eu me agachava e chegava perto do rosto do homem.

Era um senhor de cabelos grisalhos, barba por fazer e rosto muito magro. Chamei por ele e sua cabeça levantou-se alguns centímetros; os olhos e a boca abriram, mas só os olhos se fecharam quando a cabeça caiu alguns segundos depois. Já vira um infarte ao vivo e pensei estar diante do segundo, mas não. Em pouco tempo ele já estava balbuciando coisas e descobri que ele não sentia dor, mas fome. Pareceu envergonhado quando disse que não comia há três dias.

Meu sogro e minha mulher foram comprar comida. O sujeito recostou-se nas grades do edifício e respondia às minhas perguntas com alguma dificuldade, mas menos constrangido do que antes. Disse que estava fora de casa há três dias procurando um bico que lhe desse dinheiro para comprar picolés que por sua vez seriam vendidos na praia. O problema é que o bico não aparecia, ele não tinha dinheiro para voltar para casa em Itaipu e, mesmo que tivesse, lá lhe aguardavam uma mulher, dois filhos, cinco meses de fiado na quitanda e seis meses de aluguel atrasado. Como se não bastasse, tinham-no destratado num posto de gasolina das redondezas do lugar onde tinha caído; parara para descansar e pedir ajuda, mas fizeram piada e o expulsaram. Disse-me o seu Antônio que "depois se eu jogar um tijolo neles eles vão ver", mas arrependeu-se e falou que era direito quando eu respondi que isso só complicaria ainda mais a sua vida.

Minha mulher e meu sogro chegaram com pão, queijo, Toddynho e outras formas de amido, açúcar e gordura. Foi só começar a comer que o Seu Antônio melhorou de fisionomia. Deixamos R$ 50,00 e dissemos tchau, porque íamos jantar.

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O restaurante tinha uma varanda ao ar livre e foi ali que sentamos. Passei a maior parte do jantar olhando para a rua e dizendo que estava muito, mas muito arrependido de não ter oferecido uma ajuda mais significativa para o senhor. Pensei que, se ele aparecesse, eu me compromeria a dar-lhe uma "bolsa" mensal razoável por no mínimo uns 6 meses, a "organizar" a sua vida e a procurar emprego para ele. Lembrei da revista Ocas: não gosto da linha editorial mas achei que seria um emprego bom para ele. Pena que não adiantava pensar àquela altura do campeonato.

Já estava me preparando para uma vida de culpa quando o Seu Antônio passou sorrindo, lépido e fagueiro pela frente do restaurante. Pulei da cadeira, corri atrás dele e acabei assustando-o sem querer. Expus meu plano bem devagar e a reação dele foi um pouco estranha: parecia que ele tinha gostado da idéia, mas que o que eu falava era muito complicado para ele entender. Como nao tinha muito dinheiro e os caixas eletrônicos já estavam fechados, marquei um encontro com ele às 17h do dia seguinte para pagá-lo a primeira bolsa. Antes, comprei um cartão de telefone e dei-lhe meus números num pedaço de papel. Por algum motivo pensei em perguntar se ele sabia ler números ou letras; ele respondeu que não.

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Seu Antônio se atrasou uma hora para o encontro do dia seguinte, na frente do mesmo prédio da véspera. Estava de banho tomado, barba feita e roupa ajetadinha. Estendi-lhe um papel com todo o meu plano de ajuda detalhado e a recomendação de que, se precisasse conferir alguma coisa do nosso trato, que procurasse alguém de muita confiança e pedisse para ler esta folha. Em outro papel havia escrito uma lista de informações sobre igrejas e obras de caridade perto daonde ele disse morar, conseguidas durante o dia com a ajuda de amigos. Dei o dinheiro da bolsa, que disse ser uma vaquinha de meus colegas de trabalho (mentira: era todo meu). Ele o guardou, mas não foi embora: fomos caminhando e conversando.

Fiz algumas perguntas sobre a família dele. Aparentando constrangimento, ele respondeu:

-- Olha, você não vai ficar chateado não? É que eu tô separado da minha mulher há seis meses, que eu peguei ela com um bombeiro... E os filho, eles num são meu não, são do homem de antes.

Deixei passar sem deixar de notar que havia deixado passar. Sacudi a cabeça para espantar a sensação de senhor feudal, mas ele quis ser mais servo e piorar meu estado de espírito:

-- Olha, você vai gostar de mim! Eu sou gente boa, conto piada, sou alegre, trabalhador (sabe, fui trocador de ônibus)...

Paguei-lhe um lanche que ele fez questão de comer fora da lanchonete, talvez com vergonha de expôr a boca com meia dúzia de dentes. Fomos a uma igreja das redondezas, mas não chegamos a tempo de tentar arrumar uma das cestas básicas do dia. O seu Antônio cismou que um funcionário da igreja era conhecido seu da época em que vendia sorvete na praia.

Fora da igreja, perguntou-me se pretendia viajar. Falei que não e ele me contou que tinha tido um benfeitor naquele bairro, que parou de ajudá-lo dizendo que iria fazer uma viagem longa. Conversamos mais alguns minutos e nos despedimos.

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No dia seguinte eu já tinha convicção de que devia ter dado mais dinheiro para o cara. Esperava falar com ele alguns dias depois; de fato, nosso trato incluía ligações semanais dele com dia e hora marcados. Mas chegou o dia e ele não ligou. Será que não tinha entendido o plano?

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Quase uma semana depois o seu Antônio resolveu telefonar. Uma mulher falava ao seu lado e aparentemente queria pegar o telefone para falar comigo. Explicou-me que aquela era a sua credora na mercearia. Entre ele largar o elefone e ela pegar, ouvi trechos desconexos do que ele dizia -- "minha mulher", "mercearia" -- e da resposta dela -- "Falou/falo [...] mulher?"

A moça pegou o telefone e, com a voz impaciente, me explicou que era mulher do dono da mercearia, mas estava para se divorciar. Apesar de adorar o seu Antônio -- como, aliás, todos no bairro --, tinha que receber o pagamento da dívida porque o quase-ex-marido mais cedo ou mais tarde lhe cobraria aquilo. Sabia do nosso plano, mas parecia querer que eu lhe desse mais dinheiro imediatamente, para que ele quitasse a dívida logo. Fiquei incomodado e, para aliviar a pressão, aproveitei uma mentira anterior. Respondi que o dinheiro mensal combinado vinha de uma vaquinha, que até agora meus colegas tinham confiado em mim mesmo sem ver o seu Antônio, mas que parariam de fazê-lo se eu pedisse mais dinheiro tão rápido. Ela concordou e acabou se tranqüilizando com a minha promessa de cumprir o trato original. Então resolveu me contar do divórcio. Falei que era uma coisa triste; ela disse "Sabe que não?", empolgou-se e falou sem parar para respirar que era jovem e que a vida, assim, agora ela ia, assim, ia poder sair com os amigo e ficar mais, assim, assim, assim... Não sabia o que vinha daí e temi detalhes picantes, mas ela encerrou dizendo-se "livre!".

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Uns 10 dias depois eu fui à Praça XV para mais um encontro marcado com o seu Antônio. O objetivo era levá-lo à sede da Ocas, que eu já houvera contatado por telefone e que iria dar-lhe um emprego. É verdade que o futuro empregado nao tinha demonstrado ânimo com a oferta, mas eu torcia para que isto não nos causasse problemas.

Ao mesmo tempo, estava muito encafifado. Desde o iníco desta história havia várias pequenas inconsistências no papo do seu Antônio Coutinho. A maior parte não está escrita, mas uma que está é que ele se dizia analfabeto, incapaz de ler números e ex-trocador de ônibus. A conversa com a moça da mercearia também estava cheia de contradiçõezinhas. As frases entrecortadas que os ouvi dizer se juntaram na minha cabeça e me fizeram pensar que ela era a (ex-)mulher dele representando um personagem.

Estava grilado, muito grilado. Será que seu Antônio estava me armando uma cilada? Será que ele farejava a minha vontade de ajudar e a dose de culpa por não ajudar mais? Olhava para os lados ansioso, esperando alguma surpresa desagradável. Estava tão receoso que, já na Praça XV, respondi com mentiras e evasivas a um senhor que veio puxar conversa.

A surpresa desagradável veio. Resisti ao medo e esperei por uma hora e quarenta minutos, mas o seu Antônio não apareceu. De fato, ele nunca mais apareceu, nem para pegar as "bolsas" seguintes que eu lhe teria dado de bom grado.

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Até hoje não faço idéia do que aconteceu. Se seu Antônio queria me engrupir, por que desprezou as bolsas? Talvez ele seja meio tantã ou a fome lhe tenha feito mal aos miolos; consigo encontrar evidências disto na história, mas não tantas a ponto de me resolver. Ele também pode estar doente, ou morto, ou ter arrumado ajuda de outro lugar.

A hipótese em que penso mais é em certo sentido a mais triste. Será que ele simplesmente não conseguia cumprir com o plano apesar de entendê-lo? Isso pode parecer absurdo, mas ele realmente parecia viver num universo distante das estruturas de dia, hora, compromisso e planejamento da "vida séria"; tinha pensamentos amplos para certos assuntos e terrivelmente estreitos para outros. Em seu mundo os benfeitores às vezes apareciam, mas às vezes viajavam. Havia ingenuidade demais e um certo modo quase poético, embora desgraçadamente mal-sucedido, de viver ao Deus-dará.

Quis ajudá-lo, mas como é que se ajuda alguém assim? No fundo ele precisava de mais do que mais dinheiro: ele precisava de uma mãe. O problema é encontrar tempo, ânimo e principalmente coragem para ser mãe de um senhor desconhecido.

3 comentários:

Picolé Frutos do Mato disse...

Roberto queria acreditar que essa história do seu Antonio fosse um conto. Daqueles que não pertubam ninguém, que após ler, o único resultado crítico fosse a inquietação da observação, a criatividade e a clareza da crônica.
Seu tempo de solidariedade é outro. Por isso me pertuba mais, nem admiração nem desdém, mas perplexidade. A realidade da sua atitude diante de um sofrimento alheio, e você nem pondera sequer de leve a causa, que qualquer outro pensaria, numa tentiva de espiar a culpa em não ajudar. Sem receio você entrou na vida do seu Antonio, corajoso correu riscos, de ser enganado era o menor.

Roberto Imbuzeiro Moraes Felinto de Oliveira disse...

Certo, mas quem é você? :) O Edson do Botequim Socialista? Achei o estilo de escrever parecido, mas tô na dúvida.

Roberto Imbuzeiro Moraes Felinto de Oliveira disse...

Ah, realmente não é um conto. É o relato factual mais preciso que consegui escrever depois de seis meses.