Entrei no ônibus e sentei no fundo, ao lado de uma janela, e encostei a cabeça no vidro. Estava nublado e eu não conseguia ver os topos dos morros da Floresta da Tijuca, mas a luz baça que chegava às árvores preenchia os espaços entre elas, dourava-as, fazia-as saltar à vista com as copas infladas de claridade. Era como se a mata tivesse sido re-esculpida para realçar a delicadeza de cada galho se ramificando e afinando até chegar a um nada na ponta.
Lembrei da minha infância e de como me divertia olhar as coisas de dentro do carro em movimento: as árvores, uma mais a frente e parecendo andar mais rápido que a outra; a placa por detrás de outra que depois se exibe; os pedestres, conversando agitados, caminhando para trás; as casas de que se vê um pouco do interior, meio misteriosas e às vezes bonitas. Era um momento singelo e quase feliz, mas eu estava a caminho do Cemitério São João Batista para o enterro do meu amigo A.
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Meu amigo A era flamenguista, trotskista, idealista, membro do PSTU, bom de garfo, bom leitor, bem humorado, de opiniões seguras, leal. Se eu escrevesse a história da vida dele, o desfecho seria uma morte causada por uma destas características, nobre ou no mínimo bastante pitoresca, que chegasse a parecer melhor do que as vidas dos que ficam. Mas a morte de A foi quase indigna do personagem: sei que ele gostava muito do off-road, mas um acidente de carro não era o jeito certo de concluir a trama.
A notícia chegou a mim via Internet e à minha mulher pelos meus gritos logo depois. Fiquei bastante tempo perdido, preenchido por uma água negra, parada e fétida. Mas existe o mundo do Lado de Fora (o Lado de Fora físico e metafísico), que é daonde realmente me vem a paz. Ainda no ônibus eu não conseguia pensar direito nas coisas, mas pelo menos a alma já estava secando ao sol.
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No ônibus me passou pela cabeça escrever um conto chamado "O enterro místico de A.". Seria uma alegoria bestinha em que representantes de todos os grupos signigicativos da humanidade -- quilombolas, palestinos, operários, anões -- se apresentariam no cemitério por admirar e identificar-se com meu amigo. (Os anões serviriam a um propósito dramático; o narrador os veria entrando no cemitério e ficaria temporariamente na expectativa de ver um lendário enterro de anão.) Depois apareceriam anjos para levar A pro Céu, o que lhe daria um tremendo susto. O conto terminaria com um grito estrondoso dado lá de cima -- "Caralho, Você existe!" --, naquela voz do A, e de algum modo eu teria de representar não só a voz como o "V" maiúsculo na fala dele, para que o narrador não tivesse dúvidas de Quem se tratava.
O péssimo argumento não combina com o que sinto hoje, mas é necessário que eu explique o que pretendia dizer com ele. Deve estar bastante evidente para quem me conhece que nossas maneiras de ver o mundo (a de A e a minha) são muito diferentes. No entanto, um dos melhores argumentos que já achei para a minha é ele. Se no fundo, no fundo, tudo é Amor -- a estrutura última das coisas, a vida de cada um, os sonhos secretos do Universo, o Deus parido de uma moça jovem --, e se esse Amor, longe de ser só um sentimentalismo, é uma postura ao mesmo tempo altiva, acolhedora e respeitosa, então A era uma demonstração prática da minha teoria, melhor que a que eu, teórico, seria capaz de apresentar por meus próprios méritos.
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Esquecido o conto, voltei a olhar para fora do ônibus. É comum que eu passe a pensar semi-ceticamente depois de devaneios religiosos e desta vez resolvi me convencer de que, se olhasse para as coisas com bastante atenção, acharia muito de A nelas, não por "sincronicidade", mas porque essa fartura de interpretações é algo a que a realidade se dá meio que por acaso. Logo, logo, vieram as provas. De um lado, operários brigando e brincando no alto do andaime. Mais adiante, uma bandeira do Flamengo pendurada em uma varanda alta. Uma kombi abalroou o ônibus: tinha um adesivo escrito "É fácil me conhecer, difícil é me esquecer". Seus vidros eram fumê e não consegui ver o motorista, de quem fiquei com uma impressão fantasmagórica.
Veio-me a sensação que em mim sempre acompanha as notícas de morte. É como se ouvisse uma música bem dissonante no final, que maldosamente termina com o volume diminuindo, sem que a harmonia seja restituída a um centro estável. A dissonância se prolonga cada vez mais débil e mais funda nos ouvidos; no final, acaba se tornando parte da minha vida.
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Saltei do ônibus a uns 300m do portão do cemitério. A lembrança do amigo comunista me dava a obrigação de prestar bastante atenção na favela mais adiante.
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Cheguei ao São João Batista na hora em que haviam me dito que o enterro aconteceria, mas descobri que ele acabara 2h antes. Erro de comunicação. Fui ao túmulo mesmo assim, meio chateado mas sem saber bem por quê. Passei por longas vielas de jazigos decorados com anjos, Cristos ressucitados, Marias e figuras helênicas, tudo desgraçadamente sujo e velho. No meio daquilo, funcionários do cemitério falavam alto.
Segui para o túmulo, pedindo ajuda no meio do caminho a um senhor negro bem velho e com um sotaque quase bantu. Era outra coisa a que tinha que prestar bastante atenção e a parada fez com que algumas pessoas passassem à minha frente. Acabei chegando junto com elas ao túmulo. Das seis pessoas, três estavam com roupa de trabalho em escritório (seriam colegas do A?) e foram logo embora. Ficaram uma mulher e dois homens; um destes chorava copiosamente e esmurrava o túmulo.
As coroas de flores cobriam a lápide. Não dava para ver o nome do defunto nela e uma das coroas tinha uma faixa com o nome do A escrito errado. Passou pela cabeça a idéia boba e logo descartada de que talvez aquele não fosse meu amigo e tudo fosse um mal-entendido.
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Quando resolvi cheguar mais perto do túmulo, o rapaz que chorava me abordou. Apresentou-se, me apertou a mão e me explicou que A morrera por "se achar espertão" e tomar uma trilha mais difícil na volta para casa, tendo sido achado morto um dia e meio depois. Disse que o A era um dos seus melhores amigos e padrinho de casamento, mas que eles não se falavam há três anos por conta de uma briga besta. Ele socava o granito da lápide, gritava o seu arrependimeento e dizia que tudo o que queria era um minuto a mais com o amigo para fazer as pazes. Fiquei na dúvida do que dizer, se é que devia dizer algo, e o sujeito começou a cantar o hino da Internacional Socialista.
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional...
Continuou por uns 10 segundos prá depois dizer, meio sem jeito e entre um soluço e outro, que "pô, esqueci".
A mulher do grupo, provavelmente a esposa do rapaz que chorava, resolveu consolá-lo dizendo que pelo menos A tinha morrido fazendo algo que lhe dava prazer, o que era privilégio de poucos. Era uma frase-chavão perfeitamente compreensível nas circunstâncias. O outro rapaz, até então calado, disse que trabalhava no mesmo ramo que A e que recebia deles ótimos conselhos sempre que pedia e que A realmene era fora de série.
Logo depois disso o grupo se despediu de mim. Abracei o chorão dizendo:
-- Cara, deixa o remorso prá lá e fica só com a saudade, que ela não tem jeito.
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Sozinho ao lado do túmulo e resolvido a rezar, me abaixei e fechei os olhos. Fiquei ali algum tempo e me levantei sem saber se devia terminar de rezar, pensando em dizer mais um verso ou mais uma estrofe de oração, mas resolvi deixar isso para mais tarde.
Só então reparei na bela vista do ponto onde estava. De um lado havia a favela no fundo do cemitério. Do outro, o Morro Dona Marta e outra favela. No meio, o Corcovado só com o pico e o Cristo Redentor expostos. Olhei para o Cristo, mas logo resolvi olhar para as favelas, mais uma vez por causa do A. Depois disso a estátua foi encoberta pelas nuvens. Fechei os olhos por uns segundos, enxuguei-os e, olhando de novo pro Corcovado, vi a mão do Cristo para fora da névoa.
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7 comentários:
Muito obrigado.
Obrigado pelas palvaras Roberto. Infelizmente o enterro teve que ser adiantado pelo estado do corpo. Suas palavras reconfortam o meu coração. Obrigado.
Esposa do Artur.
Uma despedida de amigo, verdadeiramente.
Roberto,
Não o conheço, mas temos algo em comum: a honra de ter conhecido uma pessoa inteligente, divertida e sincera. Ele era uma pessoa que marcava presença em nosso ambiente de trabalho (raras eram as vezes em que estava de mau-humor). é uma pessoa que vai deixar muita saudade.
Obrigado por tão belas palavras para aquele que se fosse governante de nosso país, teria sido um grande líder.
Roberto,
Suas palavras foram lindas, estou emocinado, enxugando as lagrimas na lembraça de um amigo que se foi.
Infelizmente não pude ir ao enterro, hoje é o dia da Missa e aqui estou, no serviço, onde eu sempre encontrava o "A", um cara que estava sempre disposto a ajudar todo mundo, ensinar, aprender, brincar...
"A" era um cara nota 1000.
Agora restam as lembranças de tudo que "A" acrescentou em nossas vidas e a saudade de alguém que todos nós adoravamos.
"A" durma em PAZ.
Obrigado.
Uma vez uma pessoa me disse que ser amigo, generoso e culto fazem com que o ser humano adquira luz própria.
"A" aonde estiver certamente está iluminando os que o rodeiam!
Maurício Lacerda.
Roberto,
infelizmente, apenas agora conheci seu blog. Texto magnífico e uma justa homenagem a quem merece.
Abraços.
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