17 de jan. de 2007

Meio ambiente e convívio social no trânsito

[Página 18 do livrinho "Renovação da CNH", do Detran-RJ. Por quê? Nao faço idéia.]

Lei da natureza

A natureza é sábia.

Sábia, abundante e paciente.

Sábia porque traz em si o mistério da vida, da reprodução, da
interação perfeita e equilibrada entre seus elementos. Abundante
em sua diversidade, em sua riqueza genética, em sua maravilha e
em seus encantos. E é paciente. Não conta seus ciclos em horas,
minutos e segundos, nem no calendário gregoriano com o qual nos
acostumamos a fazer planos, cálculos e contagens. Sobretudo é
generosa, está no mundo acolhendo o homem com sua inteligência,
seu significado divino, desbravador, conquistador e insaciável. Às
vezes, nesse confronto, o homem extrapola seus poderes e ela cala.
Noutras, se volta, numa autodefesa, e remonta seu império sobre a
obra humana, tornando a ocupar seu espaço e sua importância. O
convívio e a consciência de gerações na utilização de recursos naturais
necessitam seguir regras claras que considerem e respeitem a sua
disponibilidade e vulnerabilidade.

E, assim, chegamos ao que as sociedades adotaram como regras de
convivência, as práticas que definem padrões e comportamentos,
aliadas a sanções aplicáveis para o seu eventual descumprimento:
as leis.

Meio Ambiente

É tudo que está a nossa volta. Isso abrange o ar, a água, todas as
formas de vida, bem como tudo mais que nos cerca. Atmosfera, água
dos rios, mares, lagos, chuva, solo e subsolo; montanhas, vales,
campos, florestas, cidades, edifícios, pontes, estradas, objetos,
microorganismos, todos os vegetais, todos os animais e o homem.

Qual será, de todos estes elementos, o mais importante, o mais
precioso?

Sem dúvida, a vida.

16 de jan. de 2007

Matéria (por São João Damasceno)


(http://www.ortodoxiabrasil.com/apologetica/faq.html)

“Antigamente, o Deus incorpóreo e desconhecido nunca era representado. Agora, quando Deus foi visto de perto em carne, e conversou com os homens, eu faço uma imagem deste Deus que vi. Eu não adoro à matéria, adoro ao Deus da matéria, que tornou-se material para minha salvação, e Ele habitou na matéria, por onde trouxe minha salvação. Não vou parar de honrar a matéria que trabalhou pela minha salvação. Eu a venero, apesar de não venerá-la como venero a Deus. Como poderia Deus ter nascido de algo sem vida? E se o corpo de Deus é Deus pela união, Ele é imutável. A natureza de Deus permanece a mesma de antes, a carne criada no tempo é parte de uma alma lógica e racional.”

(A imagem vem da Wikipédia.)

11 de jan. de 2007

Conselho sapiental do dia

Quem não chora, não mama.

('Brigadim, Kata!)

Momento carente do dia

Não sei que fazem as pessoas que têm 4, 5, 29 depoimentos no Orkut. Só sei que eu não faço.

10 de jan. de 2007

Seu Antônio Coutinho

Há alguns meses encontrei um homem caído na rua ao sair de um prédio. Ao seu lado, uma caixa de isopor dessas de vendedor de sorvete. Minha mulher e meu sogro, que me acompanhavam, foram chamar os porteiros enquanto eu me agachava e chegava perto do rosto do homem.

Era um senhor de cabelos grisalhos, barba por fazer e rosto muito magro. Chamei por ele e sua cabeça levantou-se alguns centímetros; os olhos e a boca abriram, mas só os olhos se fecharam quando a cabeça caiu alguns segundos depois. Já vira um infarte ao vivo e pensei estar diante do segundo, mas não. Em pouco tempo ele já estava balbuciando coisas e descobri que ele não sentia dor, mas fome. Pareceu envergonhado quando disse que não comia há três dias.

Meu sogro e minha mulher foram comprar comida. O sujeito recostou-se nas grades do edifício e respondia às minhas perguntas com alguma dificuldade, mas menos constrangido do que antes. Disse que estava fora de casa há três dias procurando um bico que lhe desse dinheiro para comprar picolés que por sua vez seriam vendidos na praia. O problema é que o bico não aparecia, ele não tinha dinheiro para voltar para casa em Itaipu e, mesmo que tivesse, lá lhe aguardavam uma mulher, dois filhos, cinco meses de fiado na quitanda e seis meses de aluguel atrasado. Como se não bastasse, tinham-no destratado num posto de gasolina das redondezas do lugar onde tinha caído; parara para descansar e pedir ajuda, mas fizeram piada e o expulsaram. Disse-me o seu Antônio que "depois se eu jogar um tijolo neles eles vão ver", mas arrependeu-se e falou que era direito quando eu respondi que isso só complicaria ainda mais a sua vida.

Minha mulher e meu sogro chegaram com pão, queijo, Toddynho e outras formas de amido, açúcar e gordura. Foi só começar a comer que o Seu Antônio melhorou de fisionomia. Deixamos R$ 50,00 e dissemos tchau, porque íamos jantar.

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O restaurante tinha uma varanda ao ar livre e foi ali que sentamos. Passei a maior parte do jantar olhando para a rua e dizendo que estava muito, mas muito arrependido de não ter oferecido uma ajuda mais significativa para o senhor. Pensei que, se ele aparecesse, eu me compromeria a dar-lhe uma "bolsa" mensal razoável por no mínimo uns 6 meses, a "organizar" a sua vida e a procurar emprego para ele. Lembrei da revista Ocas: não gosto da linha editorial mas achei que seria um emprego bom para ele. Pena que não adiantava pensar àquela altura do campeonato.

Já estava me preparando para uma vida de culpa quando o Seu Antônio passou sorrindo, lépido e fagueiro pela frente do restaurante. Pulei da cadeira, corri atrás dele e acabei assustando-o sem querer. Expus meu plano bem devagar e a reação dele foi um pouco estranha: parecia que ele tinha gostado da idéia, mas que o que eu falava era muito complicado para ele entender. Como nao tinha muito dinheiro e os caixas eletrônicos já estavam fechados, marquei um encontro com ele às 17h do dia seguinte para pagá-lo a primeira bolsa. Antes, comprei um cartão de telefone e dei-lhe meus números num pedaço de papel. Por algum motivo pensei em perguntar se ele sabia ler números ou letras; ele respondeu que não.

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Seu Antônio se atrasou uma hora para o encontro do dia seguinte, na frente do mesmo prédio da véspera. Estava de banho tomado, barba feita e roupa ajetadinha. Estendi-lhe um papel com todo o meu plano de ajuda detalhado e a recomendação de que, se precisasse conferir alguma coisa do nosso trato, que procurasse alguém de muita confiança e pedisse para ler esta folha. Em outro papel havia escrito uma lista de informações sobre igrejas e obras de caridade perto daonde ele disse morar, conseguidas durante o dia com a ajuda de amigos. Dei o dinheiro da bolsa, que disse ser uma vaquinha de meus colegas de trabalho (mentira: era todo meu). Ele o guardou, mas não foi embora: fomos caminhando e conversando.

Fiz algumas perguntas sobre a família dele. Aparentando constrangimento, ele respondeu:

-- Olha, você não vai ficar chateado não? É que eu tô separado da minha mulher há seis meses, que eu peguei ela com um bombeiro... E os filho, eles num são meu não, são do homem de antes.

Deixei passar sem deixar de notar que havia deixado passar. Sacudi a cabeça para espantar a sensação de senhor feudal, mas ele quis ser mais servo e piorar meu estado de espírito:

-- Olha, você vai gostar de mim! Eu sou gente boa, conto piada, sou alegre, trabalhador (sabe, fui trocador de ônibus)...

Paguei-lhe um lanche que ele fez questão de comer fora da lanchonete, talvez com vergonha de expôr a boca com meia dúzia de dentes. Fomos a uma igreja das redondezas, mas não chegamos a tempo de tentar arrumar uma das cestas básicas do dia. O seu Antônio cismou que um funcionário da igreja era conhecido seu da época em que vendia sorvete na praia.

Fora da igreja, perguntou-me se pretendia viajar. Falei que não e ele me contou que tinha tido um benfeitor naquele bairro, que parou de ajudá-lo dizendo que iria fazer uma viagem longa. Conversamos mais alguns minutos e nos despedimos.

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No dia seguinte eu já tinha convicção de que devia ter dado mais dinheiro para o cara. Esperava falar com ele alguns dias depois; de fato, nosso trato incluía ligações semanais dele com dia e hora marcados. Mas chegou o dia e ele não ligou. Será que não tinha entendido o plano?

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Quase uma semana depois o seu Antônio resolveu telefonar. Uma mulher falava ao seu lado e aparentemente queria pegar o telefone para falar comigo. Explicou-me que aquela era a sua credora na mercearia. Entre ele largar o elefone e ela pegar, ouvi trechos desconexos do que ele dizia -- "minha mulher", "mercearia" -- e da resposta dela -- "Falou/falo [...] mulher?"

A moça pegou o telefone e, com a voz impaciente, me explicou que era mulher do dono da mercearia, mas estava para se divorciar. Apesar de adorar o seu Antônio -- como, aliás, todos no bairro --, tinha que receber o pagamento da dívida porque o quase-ex-marido mais cedo ou mais tarde lhe cobraria aquilo. Sabia do nosso plano, mas parecia querer que eu lhe desse mais dinheiro imediatamente, para que ele quitasse a dívida logo. Fiquei incomodado e, para aliviar a pressão, aproveitei uma mentira anterior. Respondi que o dinheiro mensal combinado vinha de uma vaquinha, que até agora meus colegas tinham confiado em mim mesmo sem ver o seu Antônio, mas que parariam de fazê-lo se eu pedisse mais dinheiro tão rápido. Ela concordou e acabou se tranqüilizando com a minha promessa de cumprir o trato original. Então resolveu me contar do divórcio. Falei que era uma coisa triste; ela disse "Sabe que não?", empolgou-se e falou sem parar para respirar que era jovem e que a vida, assim, agora ela ia, assim, ia poder sair com os amigo e ficar mais, assim, assim, assim... Não sabia o que vinha daí e temi detalhes picantes, mas ela encerrou dizendo-se "livre!".

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Uns 10 dias depois eu fui à Praça XV para mais um encontro marcado com o seu Antônio. O objetivo era levá-lo à sede da Ocas, que eu já houvera contatado por telefone e que iria dar-lhe um emprego. É verdade que o futuro empregado nao tinha demonstrado ânimo com a oferta, mas eu torcia para que isto não nos causasse problemas.

Ao mesmo tempo, estava muito encafifado. Desde o iníco desta história havia várias pequenas inconsistências no papo do seu Antônio Coutinho. A maior parte não está escrita, mas uma que está é que ele se dizia analfabeto, incapaz de ler números e ex-trocador de ônibus. A conversa com a moça da mercearia também estava cheia de contradiçõezinhas. As frases entrecortadas que os ouvi dizer se juntaram na minha cabeça e me fizeram pensar que ela era a (ex-)mulher dele representando um personagem.

Estava grilado, muito grilado. Será que seu Antônio estava me armando uma cilada? Será que ele farejava a minha vontade de ajudar e a dose de culpa por não ajudar mais? Olhava para os lados ansioso, esperando alguma surpresa desagradável. Estava tão receoso que, já na Praça XV, respondi com mentiras e evasivas a um senhor que veio puxar conversa.

A surpresa desagradável veio. Resisti ao medo e esperei por uma hora e quarenta minutos, mas o seu Antônio não apareceu. De fato, ele nunca mais apareceu, nem para pegar as "bolsas" seguintes que eu lhe teria dado de bom grado.

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Até hoje não faço idéia do que aconteceu. Se seu Antônio queria me engrupir, por que desprezou as bolsas? Talvez ele seja meio tantã ou a fome lhe tenha feito mal aos miolos; consigo encontrar evidências disto na história, mas não tantas a ponto de me resolver. Ele também pode estar doente, ou morto, ou ter arrumado ajuda de outro lugar.

A hipótese em que penso mais é em certo sentido a mais triste. Será que ele simplesmente não conseguia cumprir com o plano apesar de entendê-lo? Isso pode parecer absurdo, mas ele realmente parecia viver num universo distante das estruturas de dia, hora, compromisso e planejamento da "vida séria"; tinha pensamentos amplos para certos assuntos e terrivelmente estreitos para outros. Em seu mundo os benfeitores às vezes apareciam, mas às vezes viajavam. Havia ingenuidade demais e um certo modo quase poético, embora desgraçadamente mal-sucedido, de viver ao Deus-dará.

Quis ajudá-lo, mas como é que se ajuda alguém assim? No fundo ele precisava de mais do que mais dinheiro: ele precisava de uma mãe. O problema é encontrar tempo, ânimo e principalmente coragem para ser mãe de um senhor desconhecido.

8 de jan. de 2007

A morte de AFP

Entrei no ônibus e sentei no fundo, ao lado de uma janela, e encostei a cabeça no vidro. Estava nublado e eu não conseguia ver os topos dos morros da Floresta da Tijuca, mas a luz baça que chegava às árvores preenchia os espaços entre elas, dourava-as, fazia-as saltar à vista com as copas infladas de claridade. Era como se a mata tivesse sido re-esculpida para realçar a delicadeza de cada galho se ramificando e afinando até chegar a um nada na ponta.

Lembrei da minha infância e de como me divertia olhar as coisas de dentro do carro em movimento: as árvores, uma mais a frente e parecendo andar mais rápido que a outra; a placa por detrás de outra que depois se exibe; os pedestres, conversando agitados, caminhando para trás; as casas de que se vê um pouco do interior, meio misteriosas e às vezes bonitas. Era um momento singelo e quase feliz, mas eu estava a caminho do Cemitério São João Batista para o enterro do meu amigo A.

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Meu amigo A era flamenguista, trotskista, idealista, membro do PSTU, bom de garfo, bom leitor, bem humorado, de opiniões seguras, leal. Se eu escrevesse a história da vida dele, o desfecho seria uma morte causada por uma destas características, nobre ou no mínimo bastante pitoresca, que chegasse a parecer melhor do que as vidas dos que ficam. Mas a morte de A foi quase indigna do personagem: sei que ele gostava muito do off-road, mas um acidente de carro não era o jeito certo de concluir a trama.

A notícia chegou a mim via Internet e à minha mulher pelos meus gritos logo depois. Fiquei bastante tempo perdido, preenchido por uma água negra, parada e fétida. Mas existe o mundo do Lado de Fora (o Lado de Fora físico e metafísico), que é daonde realmente me vem a paz. Ainda no ônibus eu não conseguia pensar direito nas coisas, mas pelo menos a alma já estava secando ao sol.

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No ônibus me passou pela cabeça escrever um conto chamado "O enterro místico de A.". Seria uma alegoria bestinha em que representantes de todos os grupos signigicativos da humanidade -- quilombolas, palestinos, operários, anões -- se apresentariam no cemitério por admirar e identificar-se com meu amigo. (Os anões serviriam a um propósito dramático; o narrador os veria entrando no cemitério e ficaria temporariamente na expectativa de ver um lendário enterro de anão.) Depois apareceriam anjos para levar A pro Céu, o que lhe daria um tremendo susto. O conto terminaria com um grito estrondoso dado lá de cima -- "Caralho, Você existe!" --, naquela voz do A, e de algum modo eu teria de representar não só a voz como o "V" maiúsculo na fala dele, para que o narrador não tivesse dúvidas de Quem se tratava.

O péssimo argumento não combina com o que sinto hoje, mas é necessário que eu explique o que pretendia dizer com ele. Deve estar bastante evidente para quem me conhece que nossas maneiras de ver o mundo (a de A e a minha) são muito diferentes. No entanto, um dos melhores argumentos que já achei para a minha é ele. Se no fundo, no fundo, tudo é Amor -- a estrutura última das coisas, a vida de cada um, os sonhos secretos do Universo, o Deus parido de uma moça jovem --, e se esse Amor, longe de ser só um sentimentalismo, é uma postura ao mesmo tempo altiva, acolhedora e respeitosa, então A era uma demonstração prática da minha teoria, melhor que a que eu, teórico, seria capaz de apresentar por meus próprios méritos.

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Esquecido o conto, voltei a olhar para fora do ônibus. É comum que eu passe a pensar semi-ceticamente depois de devaneios religiosos e desta vez resolvi me convencer de que, se olhasse para as coisas com bastante atenção, acharia muito de A nelas, não por "sincronicidade", mas porque essa fartura de interpretações é algo a que a realidade se dá meio que por acaso. Logo, logo, vieram as provas. De um lado, operários brigando e brincando no alto do andaime. Mais adiante, uma bandeira do Flamengo pendurada em uma varanda alta. Uma kombi abalroou o ônibus: tinha um adesivo escrito "É fácil me conhecer, difícil é me esquecer". Seus vidros eram fumê e não consegui ver o motorista, de quem fiquei com uma impressão fantasmagórica.

Veio-me a sensação que em mim sempre acompanha as notícas de morte. É como se ouvisse uma música bem dissonante no final, que maldosamente termina com o volume diminuindo, sem que a harmonia seja restituída a um centro estável. A dissonância se prolonga cada vez mais débil e mais funda nos ouvidos; no final, acaba se tornando parte da minha vida.

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Saltei do ônibus a uns 300m do portão do cemitério. A lembrança do amigo comunista me dava a obrigação de prestar bastante atenção na favela mais adiante.

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Cheguei ao São João Batista na hora em que haviam me dito que o enterro aconteceria, mas descobri que ele acabara 2h antes. Erro de comunicação. Fui ao túmulo mesmo assim, meio chateado mas sem saber bem por quê. Passei por longas vielas de jazigos decorados com anjos, Cristos ressucitados, Marias e figuras helênicas, tudo desgraçadamente sujo e velho. No meio daquilo, funcionários do cemitério falavam alto.

Segui para o túmulo, pedindo ajuda no meio do caminho a um senhor negro bem velho e com um sotaque quase bantu. Era outra coisa a que tinha que prestar bastante atenção e a parada fez com que algumas pessoas passassem à minha frente. Acabei chegando junto com elas ao túmulo. Das seis pessoas, três estavam com roupa de trabalho em escritório (seriam colegas do A?) e foram logo embora. Ficaram uma mulher e dois homens; um destes chorava copiosamente e esmurrava o túmulo.

As coroas de flores cobriam a lápide. Não dava para ver o nome do defunto nela e uma das coroas tinha uma faixa com o nome do A escrito errado. Passou pela cabeça a idéia boba e logo descartada de que talvez aquele não fosse meu amigo e tudo fosse um mal-entendido.

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Quando resolvi cheguar mais perto do túmulo, o rapaz que chorava me abordou. Apresentou-se, me apertou a mão e me explicou que A morrera por "se achar espertão" e tomar uma trilha mais difícil na volta para casa, tendo sido achado morto um dia e meio depois. Disse que o A era um dos seus melhores amigos e padrinho de casamento, mas que eles não se falavam há três anos por conta de uma briga besta. Ele socava o granito da lápide, gritava o seu arrependimeento e dizia que tudo o que queria era um minuto a mais com o amigo para fazer as pazes. Fiquei na dúvida do que dizer, se é que devia dizer algo, e o sujeito começou a cantar o hino da Internacional Socialista.

Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional
Bem unidos façamos,
Nesta luta final,
Uma terra sem amos
A Internacional...


Continuou por uns 10 segundos prá depois dizer, meio sem jeito e entre um soluço e outro, que "pô, esqueci".

A mulher do grupo, provavelmente a esposa do rapaz que chorava, resolveu consolá-lo dizendo que pelo menos A tinha morrido fazendo algo que lhe dava prazer, o que era privilégio de poucos. Era uma frase-chavão perfeitamente compreensível nas circunstâncias. O outro rapaz, até então calado, disse que trabalhava no mesmo ramo que A e que recebia deles ótimos conselhos sempre que pedia e que A realmene era fora de série.

Logo depois disso o grupo se despediu de mim. Abracei o chorão dizendo:

-- Cara, deixa o remorso prá lá e fica só com a saudade, que ela não tem jeito.

-x-x-

Sozinho ao lado do túmulo e resolvido a rezar, me abaixei e fechei os olhos. Fiquei ali algum tempo e me levantei sem saber se devia terminar de rezar, pensando em dizer mais um verso ou mais uma estrofe de oração, mas resolvi deixar isso para mais tarde.

Só então reparei na bela vista do ponto onde estava. De um lado havia a favela no fundo do cemitério. Do outro, o Morro Dona Marta e outra favela. No meio, o Corcovado só com o pico e o Cristo Redentor expostos. Olhei para o Cristo, mas logo resolvi olhar para as favelas, mais uma vez por causa do A. Depois disso a estátua foi encoberta pelas nuvens. Fechei os olhos por uns segundos, enxuguei-os e, olhando de novo pro Corcovado, vi a mão do Cristo para fora da névoa.