10 de fev. de 2007

Dos percalços de um otário convicto

Não me recordo de ter feito antes o que fiz hoje na volta da praia. Uma mulher se aproximou de mim para pedir dinheiro e eu respondi com um “Não” enfático, acompanhado de um riso sarcástico.

Continuei andando com a minha mulher, mas virando a cabeça para acompanhar a pedinte com o olhar e esperando que ela me fitasse novamente. Quando isso aconteceu, disse no mesmo tom duro de antes e sem parar de caminhar:

--- Não dou porque outro dia você me pediu para comprar um nebulizador para seu filho, eu comprei, e depois a moça da loja me disse que você já tinha feito o mesmo pedido e sido atendida outras vezes...

Parei de falar sem propriamente terminar a história, quando o pescoço já me causava desconforto. Continuei rindo, mas senti que a minha mulher estava assustada e expliquei que era aquela a personagem da história que lhe contara alguns meses antes. Ela retrucou:

--- Mas eu não entendi porque você fez isso: falou com ela desse jeito prá quê, a essa altura?

Disse que não sabia. Foi aí que também me assustei.

-x-x-

O primeiro encontro com a pedinte aconteceu em outra passagem por Ipanema. Ela me interpelou com uma criança que ela disse estar doente no colo e pediu que eu comprasse comida para elas duas. Prestei muita atenção nas feições da moça: a pele bem negra e os olhos puxados eram (ou me pareceram) bem mais africanos do que a média do que se vê por aqui. Segui-a ouvindo a sua conversa, mas sem acompanhar toda a sua fala aos borbotões, que contava uma história tristemente previsível.

A certa altura a moça me disse que ficaria ainda mais grata se eu comprasse roupas para a criança, para que assim ela pudesse ir ao médico. Acatei o pedido e por isso caminhamos alguns metros na direção oposta. Quando passamos por uma loja de eletrodomésticos e ela emendou um pedido nos relatos:

-- Ah, mais melhor ainda sabe o que que seria, moço? É se a gente comprasse um nebulizador para ele, que aí ele num precisava ir pro hospital não, podia fazê em casa...

Concordei sem saber quanto o nebulizador custava. Entrei, escolhi um aparelho de preço intermediário e o levei pro caixa. Quando já estava pagando, algumas vendedoras da loja começaram a perguntar à moça “O que você tá fazendo aqui?”. Falei que ela estava comigo e outras apareceram dizendo “De novo?” sob as queixas da moça que me acompanhava. Entendi perfeitamente o que elas queriam me dizer, mas a gerente fez questão de não deixar dúvidas:

-- Só quero dizer pro senhor que ela esteve outras vezes, uma na semana passada, e fez outros fregueses comprarem nebulizadores para ela.

Olhava-me com um ar severo, cercada de vendedoras com o mesmo semblante. Sentia a cabeça como se fosse um restaurante cheio com muita gente conversando.

Prossegui com a compra e saí com a moça.

-- Esse pessoal, né não, fica falando, se metendo, como se num fosse coisa nossa, fosse a vida deles, né não? Olha, muito obrigado, que Deus lhe pague.

Devolvi a bênção e fui embora.

-x-x-

Por que fiz o que fiz? Em parte por causa da convicção interna despertada por outro episódio, da época em que ainda morava em Nova Iorque. Era uma noite normal e voltava com minha mulher para a casa. Um senhor veio nos vender bugingangas (uma bolsa, uma caixa, perfumes) contou-nos uma história que era quase perto de verossímil. Dizia-se soropositivo, recém-saído da prisão e ainda aguardava o seguro desemprego e o abrigo prometidos pelo Estado; enquanto isso, dormia na rua.

Resolvi dar-lhe o dinheiro correspondente a uma ou duas bugingangas e não levar nenhuma delas, como forma de ajudá-lo. Não foi uma decisão imediata e a mesma sensação de cabeça cheia de gente me acometeu, mas fui resgatado por uma decisão que se cristalizou em poucos segundos: mesmo que aquele senhor estivesse mentindo, eu estava gratuitamente disposto a tratá-lo como uma pessoa honesta. Sabia da minha própria experiência que às vezes as pessoas se enredam na mentira e com ela se acostumam a ponto da verdade parecer por demais laboriosa para seus objetivos. Também me lembrava de ocasiões em que me reaprumei graças à confiança e vista grossa que eu provavelmente não merecia. E para muito além da das minhas memórias havia também a minha empatia e o meu desejo (imperfeito, incompleto e nascido no medo de mil receios) de amar àquele senhor estranho. Ajudei através do que julgava compreender, em nome de tudo que eu jamais sequer conheceria.

-x-x-

A história com o senhor novaiorquino teve final parecido com a da pedinte carioca: um novo encontro alguns meses depois, um novo pedido de ajuda e uma resposta dura de minha parte. O que foi diferente hoje foi a minha raiva, que surpreendeu até a mim. Afinal, para quem se dispõe a ser otário, o ocorrido não deveria causar consternação, ainda que a moça em questão fosse obviamente uma profissional da exploração de otários (o jeito de falar rápido, mudando de idéia e conduzindo a conversa). O que me aconteceu, então?

Até onde consigo entender, eu senti duas raivas distintas. A primeira foi a do amor traído que inconscientemente se arroga virtudes, do esposo de se vinga da sua adúltera mulher jogando-a na cara a honestidade que ele manteve. Não é que eu esperasse idoneidade destas pessoas, mas no meio da minha decepção fiquei feliz por não viver (mais) com base em mentiras; pensar nisso me orgulhou e me protegeu da dor, ainda que de forma tacanha.

A outra raiva foi a de quem vê a sua criatura teórica se rebelar. Apesar da minha tentativa de não idealizar estas pessoas, eu quis que meu presente gratuito fosse um marco nas vidas da moça e do rapaz. Para isso acabei falseando-as e falseando a vida em geral. Não digo isso no sentido de me esquecer que “o ser humano é mau” ou coisa do tipo: sou otário, mas não idiota. Mas a maioria das ações boas e ruins que tomamos por aí tem toda a cara de murros em ponta de faca. Isto não exclui a esperança de que a lâmina um dia entorte, mas dificilmente isto acontecerá por uma ação ou fato isolados.

No fim, o que mais me impressionou nesta história é que eu sou menos capaz de ser otário manso do que pensava. Talvez meu destempero não seja totalmente ruim. Agora, escrevendo estas linhas e repensando o meu passado, estou certo de que é realmente melhor viver sem mentir, para além de todo e qualquer orgulho. Na meditação daonde tirei a convicção para ser otário, me esqueci de alguns berros que me ajudaram quase tanto quanto braços estendidos.

Que isso valha mais que a minha decepção com ela e comigo. Ou que não valha nada o que eu fiz, mas algo mais venha a resgatá-la.

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