14 de nov. de 2006

Filosofia da arte

Tive a sorte de presenciar o guru Gopanda Arumpananda no dia em que, depois de 20 anos calado, ele voltou a falar.

Era uma bela manhã de outono e eu caminhava pelos jardins da sua comunidade, a Om Valley, nalgum rincão perdido do norte da California. Não era a primeira vez que visitava aquele sítio; por isso, não me espantei quando vi aquele senhor sentado na grama com as pernas cruzadas, a mão no queixo e o rosto voltado para o alto. Como em outras ocasiões, havia várias pessoas sentadas em volta dele, salpicadas pelos reflexos de sua roupa brilhante. No entanto, tinha a nítida impressão de que algo estava diferente e que cada um ali tinha uma expectativa melhor para esse dia.

Senti um cheiro estranho e voltei meu rosto para a estrada. Uma caminhonete havia parado ali e dela saiu um artista que, com sua lógica inescrutável, havia ficado 10 dias sem tomar banho para se purificar. Ele e uma moça também bastante jovem pegaram uma escultura na parte de trás do veículo e começaram a caminhar na nossa direção. A cena não era de todo inusitada, já que muitos outros artistas tinham oferecido obras suas para o guru, mas seus seguidores ali presentes parecem ter se espantado com o fato que ele olhou para a obra diretamente, virando o rosto para ela, ao invés do olhar de soslaio como sempre fazia.

O artista e a moça puseram sua obra no chão ao lado do velho guru. Fizeram esforço para cumprimentá-lo da maneira vedanticamente correta, mas foi inevitável que, ocidentais que eram, sua saudação tivesse um quê de Versalhes. Terminado o salamaleque, o rapaz começou a discursar sobre o trabalho, que para olhos leigos parecia uma velha rocha erodida coberta por tinta vermelha. O jovem discursou sobre a problemática do homem moderno e seu isolamento no mundo ciber-relacional, que inevitavelmente condenava todos nós a uma reconcepção do fundamental e a uma busca incessante do nosso lugar no universo, ainda que não percebêssemos a necessidade de uma racionalidade não-instrumental...

E aí o próprio artista calou-se. Era normal que o guru esboçasse alguma mínima reação ao ouvir o que alguém falava, mas desta vez ele falou "Oh, yes...", quebrando assim seus vinte anos de silêncio. Mais do que isso: as reticências do "Oh, yes..." eram audíveis, sua inspiração denunciava que mais palavras estavam por vir.

Com todos quietos, foram dez segundos de longa espera. O guru respirava e ao longe alguns pássaros cantavam alheios à expectativa.

- Toda a arte moderna é uma grande merda! [ All modern art is one big piece of shit! ]

Não posso dizer que a mensagem tenha sido imediatamente absorvida pelos seguidores do guru. De fato, o que se viu foram alguns minutos de quase consternação no jardim. Enquanto Gopanda olhava a escultura e ria, as outras pessoas discutiam, inquietavam-se, pensavam se deviam anotar aquilo para refletir depois. O artista e a sua namorada se abraçaram por dois ou três segundos e logo ela o empurrou, abanando a mão e tossindo.

Passado algum tempo, os presentes começam a falar com o guru e pedir maiores esclarecimentos. Ele parecia disposto a responder, mas uma criança se aproximou dele com uma flor e tomou sua atenção.

-- Como é que a arte é uma merda só? [ one piece of shit ]
-- O quê?
-- Não são várias obras de arte? Então não seriam várias merdas?
-- Mas todas as merdas são uma, não é? [ All pieces of shit are one. ]
-- Por quê?

E foi aí que, ele próprio estando confuso, o guru pôs a mão no queixo, olhou para o alto e ... calou-se. O público reagiu com surpresa, mas depois com alívio. O artista e sua namorada foram embora. Devagar a vida da comunidade foi voltando ao normal, primeiro com apreensão, depois com sinceros sorrisos no rosto. O silêncio de Gopanda voltara a pairar magnânimo sobre o Om Valley. Ao que me consta, o guru não abriu a boca de novo até hoje.

2 comentários:

Mauricio disse...

Enfim, o blogueiro estah de volta! Welcome back! De onde voce tirou essa historia??? Voce escreve contos? Nao sabia. Sabia que voce escrevia poemas, mas contos pra mim eh novidade. Muito bom, muito bom.
BTW, vamos passar uns dias no Rio. Chegamos sexta, vamos marcar algo, ok?
Abracos

Lakshimi disse...

Jilozinho,
Só você mesmo!!!
OM Valley! Cara e pensar que vivi inúmeros momentos parecidos com o que você relatou na comunidade onde morei aqui na Califa! Tem muito doidão por aí, cada um com sua proposta! De qualquer maneira o Guru que acompanhei não falou enquanto estive por perto. Mas tive a chance de ler alguns dos seus textos e algumas coisas eram bem pertinentes. Agora fala sério: você tava lá, escondido atrás de uma das divindades de pedra? Sua descrição do eventos é perfeita. Saudades! Desculpa não ter aparecido ou escrito mas minha vida está dando uma reviravolta de 360!!!! Mando notícias mais completas depois. beijos no Antônio.