16 de set. de 2005

Escolha e método

Há muito e muito tempo, quando eu ainda fazia cursinho de inglês, nosso professor propôs uma série de temas para debate. Um deles foi a necessidade de obediência na prática da religião. Parecia-me então uma verdade óbvia e evidente que cada um deveria ser livre para escolher e adaptar os ensinamentos das várias tradições religiosas, e que a obediência, sendo sinônimo de aceitação incondicional ou medo de errar, era uma bobagem fácil (ou no mínimo desnecessária).

Chocou-me, portanto, que uma moça (que na minha memória era uma morena bonita e bem arrumada com aquele cabelo escorrido de índia) defendesse a idéia de que era preciso obedecer a algo diferente da vontade individual. Seria justamente daí que viria a disciplina na prática da espiritualidade e na busca da verdade que deveria ser o objetivo desta prática, para a qual não haveria necessidade de Grandes Guias se não fosse difícil atingir o objetivo desejado. Sem a tal disciplina, trocar-se-ia este processo difícil pela simples satisfação pessoal e e auto-centrada de se fazer algo segundo os próprios desejos, algo que, na opinião dela, não merecia o nome de religião.

O que me deixou estarrecido nesta declaração foi que ela inverteu quase que instantaneamente o que eu pensava até então. De repente, a tradição já não era aquilo que se faz com o desleixo de quem só aceita. Muito pelo contrário: sendo a prática religiosa um condicionamento interno, o duelo da vontade com o objetivo "impessoal" era parte fundamental do jogo. E não demorou para eu descobrir que qualquer jugador deste peculiar esporte precisa antes de tudo de insistência, porque a luta é difícil; e honestidade consigo mesmo, porque sem ela o discípulo superestima seu sucesso, achando-se uma pessoa boa só porque um dia "decidiu" ser assim. A obediência total pode ser muito difícil ou talvez até não desejável, mas o fato é que religião sem confrontamento com a tradição é mais ou menos o mesmo que auto-ajuda.

O difícil explicar isto para os outros. Lembro-me bem de uma discussão numa aula de "O Homem e o Fenômeno Religioso" na PUC. Uma colega descreveu sua religiosidade como algo bem parecido com a maçaroca que a minha era até o tal debate na aula de inglês, e não resisti a perguntar:

-- Mas vem cá: você não acha que só escolhendo o que te agrada do Budismo, do Cristianismo, do New Age e de tudo o mais você só está fazendo uma coisa meio que para se agradar, e que é muito fácil viver assim?

Ou talvez não tenha dito isto desta maneira: lá na hora devo ter tido mais tato. Mas lembro-me bem da resposta dela:

-- Não [soando como "ué"]! Eu acho que eu sei escolher o que é melhor para mim!

E o olhar dela continuou bem firme no meu, a ponto de eu quase ouvir a continuação daquela resposta: "Você tá louco? Quer que eu seja um zumbi que sai por aí fazendo o que os outros dizem? Me deixa em paz!"

Talvez ela até fosse mesmo dotada da disciplina de que falei acima, mas enfim. O que sei é que não só esta idéia de que é preciso encarar a tradição com insistência e honestidade me parece cada vez mais fundamental para qualquer forma de aprendizado e de método. Não se aprende o mais importante a partir do auto-centrado desejo de conformar as coisas à visão pessoal, mas sim deixando e até torcendo para que as coisas imprimam sua marca no aprendiz. Ou melhor: toda a forma de conhecimento é antes de tudo um dar a cara a tapa, e as únicas mãos sempre por perto são as do próprio estudante.

3 comentários:

Anônimo disse...

Me parece, entao, que sua defesa da tradicao se baseia na crenca (palavra perigosa neste contexto) de que nossos antepassados, ou seja la quem foi que nos passou esta tradicao, a viam como integrante de uma doutrina religiosa. Talvez melhor, como parte do processo de desenvolvimento da espiritualidade.

Claro, pode ser por ai mesmo, como pode ser que Jesus Cristo seja mesmo filho de Deus, seja la o que forem essas coisas. Mas isso ja parece ser uma crenca de segunda ordem. E mais fragil do que acreditar que Ioga te aproxima do divino, ou que herboteriapia indigena cura. Digo mais fragil porque, enquanto Ioga se propoe a ser alguma coisa pros lados de um metodo, crivelmente desenvolvido nas bases da tentativa (nao cega) e erro, ao longo de seculos, visando um bem estar defensavelmente associado a algo divino, ou ao menos espiritualmente valioso, a proposta da tradicao como elemento religioso necessario tem a desvantagem de se guiar por uma racionalizacao ja questionavel (a propria religiao).

Comprar a transmutacao do vinho em sangue de Cristo (quem?) seria, entao, um facilitador (iniciador, ou catalizador, ou algo por ai) de um processo (metodo?) espiritual cujos mecanismos sao meio misteriosos.

Nao e mais facil comprar Ioga ou alquimia?

Da serie "E quem disse que o dificil e' melhor ou que o mais facil e ruim?".

Ass: Leo.

PS: Saudades.

Roberto Imbuzeiro Moraes Felinto de Oliveira disse...

Acho que preciso pensar mais no post anônimo, mas ao segundo eu respondo dizendo o seguinte. Este trecho do texto tem duas afirmações distintas: (i) a tradição tá lá e tem de ser encarada; e (ii) a grande dificuldade disto é que encarar a tradição é como corrigir o próprio dever-de-casa quando a matéria é subjetiva e não dá para ter um gabarito exato. Desenvolvendo (ii), o lance é que o cara precisa ser honesto consigo mesmo e não só entender o que a tradição espera dele, mas também se olhar e decidir se está correspondendo a esta expectativa ou não.

Fora isso, nas tradições religiosas que conheço um pouco melhor (cristianismo e budismo), há um entendimento que a tradição não é exatamente "dos outros", mas sim a manifestação de algo além de um determinado momento ou de certo grupo de pessoas humanas. Deste ponto de vista, "os outros" a quem a cara estaria sendo dada seriam Os Outros, sacou?

Era só isso, mas na hora esta metáfora do dever-de-casa não me ocorreu. :-)

Saudade.

Roberto Imbuzeiro Moraes Felinto de Oliveira disse...

Agora sobre o primeiro (e anônimo) comentário. Começo com uma digressão sobre o catolicismo: como ele estabelece regras para a salvação, tendemos a imaginar que cumprir estas regras é condição necessária e suficiente para atingi-la. Mas se tem algo em que o próprio Jesus insiste é na assimilação interior e prática constante destas regras.

O que eu entendo disso é que estas normas não devem ser encaradas só como "leis" que se obedece por uma questão de conveniência ou como um meio para atingir um fim que é mais ou menos separado do "eu" (tipo uma receita de comida). Pelo contrário, este processo de diálogo interno com as normas e prática externa delas visa uma forma de transformação do tal "eu", um legítimo exercício espiritual e físico que visa desenvolver ou fortalecer certas faculdades do fiel.

E daí? -- você pergunta. E daí que a tradição, no sentido que eu quis dar ao termo, é tanto a doutrina que nos chega, quanto o acúmulo de sua prática através dos tempos. Mais exatamente: o acúmulo da prática de gente que quis se "exercitar" do modo descrito acima e que obteve certos resultados. Neste sentido, ela é tão empírica e tão pouco "racionalizada" quanto a Ioga, embora ambas sejam *sistematizadas*; e aliás, o equivalente budista também o seria, até onde entendo dele.

As diferenças fundamentais entre Ioga light (sem pretensões metafísicas) e o cristianismo são duas. Primeiro, o objetivo daquela é mais pé-no-chão e seu cumprimento deixa menos marge a dúvidas; isto, aliás, também separa a Ioga light do budismo.

Segundo, e isto é particular ao cristianismo, o objetivo proposto por Jesus é tão profundo e tão difícil que qualquer possibilidade do seu cumprimento depende de uma Graça. Tipicamente entende-se esta Graça como a Revelação: um evento físico E metafísico em que um grande mistério é descortinado. Mas mesmo alguns católicos entendem que esta Graça pode se manifestar de outros modos, ou se Revelar de outras maneiras que não a oficial.

(Talvez alguém quisesse também botar o Budismo neste barco, mas a diferença é que a Revelação Cristã é em qualquer forma fruto da intervenção pessoal -- isto é, das pessoas da Santíssima Trindade. Mesmo que alguém queira dizer que a Verdade de Cristo está em todas as coisas -- assim como a possibilidade do conhecimento de um Buda e de Nirvana estariam --, esta pessoa, para ser cristianamente correta, teria de dizer que isto se dá pela Vontade Divina, sejá lá o que isto quiser dizer.)

Trocando em miúdos: sim, em algum sentido é mais fácil comprar Ioga, mas talvez não pelo motivo que você apresentou, Leozinho. E foi mal se eu não expliquei direito o que queria dizer por "tradição", mas é mais a prática do que aceitar que o pão vira carne ou algo do gênero.